09 Junho 2021
As comunidades Munduruku denunciaram, no dia 27 de maio, em um comunicado urgente, que mineiros ilegais estavam praticando invasões e ataques – contra casas e pessoas – em seus territórios da Amazônia brasileira. No contexto da pandemia, aumentou a ocupação de terras pelos sem-teto na Região Metropolitana de Buenos Aires. E entre 10 e 21 de abril, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) doou mais de 100 toneladas de alimentos nas comunidades da periferia do Brasil, dentro da jornada de lutas pela reforma agrária.
São três exemplos da visão a partir da base e à esquerda proposta pelo jornalista uruguaio Raúl Zibechi, em seu último livro Los pueblos rompen el cerco. Tiempos de Colapso II. Publicado por Zambra-Baladre, em colaboração com a CGT e Ecologistas em Ação, o texto de 201 páginas é a segunda parte de Tiempos de Colapso. Los pueblos en movimiento.
Zibechi, referência da pesquisa militante na América Latina, é autor, entre outras obras, de Los arroyos cuando bajan. Los desafíos del zapatismo (1995), Brasil Potência (2012) e Repensar el sur. Las luchas del pueblo mapuche (2020).
A entrevista é de Enric Llopis, publicada por Rebelión, 08-06-2021. A tradução é do Cepat.
Uma delegação do movimento zapatista, o Congresso Nacional Indígena (CNI) e a Frente de Defesa da Terra e a Água de Morelos, Puebla e Tlaxcala (FDTAMPT) iniciou a “travessia pela Europa”. Após suas diversas estadias em Chiapas, o que considera que o Ocidente pode aprender do EZLN [Exército Zapatista de Libertação Nacional]?
Posso dizer para você o que eu aprendi do zapatismo, que não necessariamente é o que eles pensam. A primeira coisa é que a luta é para sempre, tem um começo, mas não tem um fim. Não há objetivos como a tomada do poder, ganhar eleições ou chegar ao socialismo. É uma concepção da vida e do mundo em sintonia com a cultura dos povos de raiz maia que se autogovernam e talvez tenha empatia com nossos antepassados políticos, no sentido de não separar meios e fins, de que a luta não é “para”, mas uma forma de viver a vida.
A segunda é que não querem governar a outros, mas impulsionar os povos, bairros e setores sociais para que se organizem e governem a si mesmos. A ideia de governar a outros não entra dentro do universo de ideias zapatistas e, bem observada, é uma forma de opressão: se governo você, estou mandando, dando ordens. Eles trabalham com a ideia de que quem manda está obedecendo ao povo, ao coletivo.
A terceira é a ética como eixo ordenador da política. No pensamento político ainda dominante, a ética é um complemento, mas para eles é o central, fazem o que dizem e dizem o que fazem, não buscam benefício pessoal, por isso o lema “para todos, tudo, nada para nós”.
A quarta é uma rejeição ao vanguardismo, a criar organizações com uma direção que construa uma base social que orienta e marca o rumo, os tempos, objetivos e até os modos de caminhar. O vanguardismo no qual minha geração se formou busca homogeneizar o próprio campo, com a ideia da unidade como mantra sagrado, para ir impondo a hegemonia na sociedade. O EZLN rejeita os conceitos de unidade, homogeneidade e hegemonia e nisso são muito claros quando o subcomandante Marcos diz que “toda tentativa de homogeneidade nada mais é do que uma tentativa fascista de dominação”.
Eu diria para você que apesar da aparente brutalidade da linguagem, a cultura de vanguarda é corrosiva, destrói as organizações coletivas, aniquila as diferenças, e garanto que sei do que estou falando, pois me formei e pratiquei essa cultura que, quando se faz poder estatal, criminaliza as diferenças como acontece hoje na Nicarágua de Daniel Ortega.
E especificamente sobre as mulheres zapatistas?
Elas se definem como “mulheres que lutam”, ressaltando a luta, porque há feministas muito valiosas, mas que não lutam, assim como há marxistas e anarquistas que não lutam. Elas enfatizam esse aspecto e, ao mesmo tempo, se definem como antipatriarcais e anticapitalistas, não concebem a separação das duas dimensões.
Por outro lado, nos encontros de Morelia falaram sobre a necessidade de integrar as diferentes gerações, de escutar as mulheres idosas, de respeitá-las, de aprender com elas, algo que na cultura urbana ocidental não estamos acostumados a fazer. Nem a nos escutarmos entre nós, nem a escutar as pessoas idosas.
Qual é a relação do atual governo ‘progressista’ de Andrés Manuel López Obrador com o EZLN? Em que consiste o que você chama de “guerra de desgaste”?
Não existe qualquer relação. Mais ainda, o atual governo federal intensificou os ataques às comunidades e bases de apoio zapatistas, como é possível ver nas ofensivas paramilitares na região de Moisés Gandhi e Aldama, em Los Altos. Em paralelo, impulsiona políticas sociais que promovem o individualismo e a divisão das comunidades, desencadeou uma brutal ofensiva extrativista com o Trem Maia, o Projeto Integral Morelos e o Corredor Transistmiano, potencializando nessas regiões ataques militares e paramilitares aos povos originários.
Com López Obrador, como aconteceu antes com Lula e os outros progressismos, o modelo extrativista e neoliberal ganha em impulso e em profundidade, chega a novas regiões, converte a natureza em mercadorias com uma velocidade maior do que antes. Portanto, as atividades dos grupos armados se intensificam.
Quando acontecem crimes como o de Samir Flores, por se opor ao Projeto Integral Morelos, que López Obrador se comprometeu a frear na campanha eleitoral, se fazem de distraídos e avançam. Neste caso, foi tal o atrevimento que se manteve um referendo poucos dias após o crime, ignorando o chamado das comunidades para adiá-lo.
Em síntese, digo a você que o progressismo é o ataque mais feroz contra os povos porque pretende fragilizá-los e dividi-los.
Mais de um mês de protestos na Colômbia – com cinquenta mortos segundo o balanço oficial –, cujo gatilho é a reforma fiscal do presidente Duque; a revolta social no Chile (outubro de 2019) pelo aumento na tarifa do metrô de Santiago; revoltas na Bolívia contra a ex-presidente golpista Jeanine Áñez; manifestações do ‘março paraguaio’ de 2021; no Equador, contra o ex-presidente Lenín Moreno ou na Guatemala, em novembro de 2020. Há algum fio condutor ou explicação de fundo?
O fio condutor é o modelo político-econômico que chamamos de extrativismo, que é uma faceta do neoliberalismo: mineração a céu aberto, monoculturas, grandes obras de infraestrutura, hidrocarbonetos e especulação imobiliária urbana. Este modelo faz com que a metade da população seja condenada à pobreza, a não ter futuro porque desintegra, desenraiza e polariza, destrói tanto a sociabilidade anterior como a natureza, destrói os Estados-nação que alguma vez tiveram a capacidade de oferecer serviços educacionais e sanitários de qualidade para toda a população.
Como demonstra a pandemia, os que têm acesso à saúde e escola particulares estão em uma realidade, ao passo que os demais só acessam os serviços de baixa qualidade e sobrecarregados. Nestes dias, há um conflito em Chiapas com os estudantes de uma escola para professores, já que os exames são realizados de forma virtual, mas os indígenas que vivem em comunidades não têm acesso à internet e logicamente exigem um exame presencial. A única resposta que tiveram é a repressão e a prisão. Devo esclarecer que o governador de Chiapas pertence ao Morena, partido de López Obrador, que condenou as manifestações dos estudantes.
Por outro lado, em uma das entrevistas do livro você ressalta o valor da espiritualidade/ancestralidade nas comunidades do Brasil. A esquerda política e os movimentos sociais reconhecem a importância destas realidades?
Na esquerda eleitoral não conheço nada disso. No entanto, nos movimentos há muitos e diversos exemplos de formas de espiritualidade próprias. Entre os sem-terra do Brasil, existem modos inspirados na teologia da libertação e na educação popular, com muitas dinâmicas que chamam de “místicas” e que consistem em cantar e dançar em coletivos, mas também em compartilhar comida, trabalhos e os mais diversos espaço-tempos.
Cada setor social tem suas próprias formas de espiritualidade. Destacam-se as dos povos originários e negros que fazem seus rituais de harmonização em lugares sagrados com fogueiras, onde participam médicos tradicionais ou sábios.
Mas se observarmos detidamente os jovens dos bairros populares, veremos que a música e os consumos coletivos também desempenham um papel harmonizador do coletivo, assim como as músicas e os bailes. Acredito que isto é um universal: a vida coletivo-comunitária precisa de práticas espirituais de harmonização, das mais variadas, por certo.
No livro, você aborda iniciativas como o Mercado Popular de Subsistência (MPS) em Montevidéu, ou as Guardas Indígenas, Cimarronas e Campesinas na Colômbia. Que experiências de auto-organização popular destacaria, entre as que você conheceu nos últimos meses?
Eu conhecia a Guarda Indígena e a Minga do Cauca, mas agora foi reforçada com a Minga Hacia Adentro e depois já antes da revolta atual com a Minga Hacia Afuera. Ambas estão interconectadas.
A experiência do MPS é mais recente, mas tem enormes perspectivas de crescer em mundos urbanos como Montevidéu, donde temos associações tradicionais. Eu diria que existem milhares de iniciativas populares nas grandes cidades, muitas delas autogeridas mesmo com dificuldades para se manter ao longo do tempo.
Entre as experiências que vejo crescer, está a Rede Trashumante da Argentina, que há décadas partiu para uma educação popular em movimento e com movimentos, para trabalhar agora em territórios em resistência onde os sujeitos e sujeitas são os setores populares mais golpeados pelas crises e a marginalização. Meses atrás, integrei-me como um militante-educador a mais nessa rede, que está tecendo uma rede mais ampla de coletivos autônomos, em um país onde a autonomia passa por enormes desafios.
A Teia dos Povos do Brasil me parece uma experiência notável, que integra camponeses sem terra, povos originários e quilombolas, povos negros organizados em seus territórios ou quilombos. A iniciativa parte de pessoas que estiveram no MST e que consideraram que é preciso tecer uma rede (daí o nome teia) entre os povos oprimidos e explorados, algo que a direção não compartilha já que se propõe outros objetivos.
O que é a triagem social? Pode mencionar exemplos de sua aplicação?
Ainda que o nome soe complicado, é a prática que podemos observar na porta de um hospital ou de uma unidade de tratamento intensivo na hora de escolher a quem se atende e a quem se descarta. As razões para descartar são claramente a “utilidade” das pessoas do ponto de vista da acumulação de capital, e aí se deixa de lado os mais vulneráveis, que têm menos possiblidades de sobreviver, e se prioriza aqueles que podem continuar trabalhando e produzindo. É mais um reforço aos temas de Foucault.
Devo dizer que entre as muitas venturas que a pandemia me trouxe (além de alguns infortúnios), está o fato de ter me ligado a grupos como a Teia dos Povos, a Rede Trashumante e outros que já conhecia, mas que aprofundamos os laços, e com dois companheiros do México, como Tamara e Eduardo, que também são adeptos da Sexta Declaração da Selva Lacandona, e que contribuem com o texto da triagem social.
Por último, em que ponto se encontra a luta do povo mapuche? Como avalia o fato de a Convenção Constituinte do Chile reservar 17 cadeiras para os povos originários?
A militarização de Wall Mapu, decretada pelo governo de Piñera, deve ser entendida como resposta a um avanço importante nas recuperações de terras de dezenas de comunidades e um avanço na mobilização do povo mapuche. Os dados dizem que nos quatro primeiros meses de 2020, houve 17 ocupações de terras, mas neste ano ultrapassaram as 130, o que representa mais de uma por dia.
Acredito que se apresentam dois caminhos para o povo mapuche. Por um lado, a constituinte que busca apaziguar as lutas com o reconhecimento da plurinacionalidade que não terá nenhuma repercussão prática concreta, caso não passe pela restituição territorial. A simples menção dos povos na Constituição não modifica as coisas, como já aconteceu no Equador e na Bolívia.
Em paralelo, existe um amplo processo de recuperação de terras rurais e semiurbanas que vem ganhando um impulso importante, como confirma a recente entrevista a Héctor Llaitul, da Coordenação Arauco-Malleco, já que agora são muitos os coletivos e comunidades empenhadas a seguir este caminho que passa pela autonomia e o autogoverno.
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“A cultura de vanguarda é corrosiva, destrói as organizações coletivas”. Entrevista com Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU